A NEBLINA

Malokêarô
4 min readNov 30, 2017

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Malokêarô

Vestiu sãopaulo nos olhos e mergulhou no ar. Em queda livre, pediu pra deus e lembrou da Mãe, continuou caindo e caindo como num sem-fim. Era aquilo uma eterna queda ou em algum momento aquele ôco da ventania parava? No meio do fiu do corpo rasgando o vento ela ainda pensava. Passou o dedo no batedor de ponto, perdeu o trem e chegou atrasada em casa. Antes de tudo isso ainda lembrou de muita coisa, e chegou à conclusão de que aquela maré toda era fruto da ansiedade de mudar de ideia.

Dobrou a esquina do serviço e entrou na Babilônia, ainda na queda no ar, e cheia de aperto no corpo inteiro. Talvez não fosse uma queda do meio do céu, podia ser um mergulho involuntário no oceano. Com aquela pressão a te oprimir até e principalmente no fio do cabelo… E era essa a sensação. Aquele mar salgado nos olhos, todo o cascalho do planeta moído lixando a pele. O pior disso era o sal da água, que não dava jeito algum para puxar o ar sem dilacerar os pulmões.

Tudo era vigiado naquela carniça de cidade. Cada esquina. Câmeras, espelhos, buracos, carros, motos, na versão pedestre, em cavalo ou até mais politicamente correto de bicicleta. Celular. Tinha bico em todo lugar. E ela tinha medo. Pediu pra Mãe não morrer tão cedo. Lembrou de deus vendo o décimo mendigo jogado na rua naquele dia. Podia estar dormindo ou morto. Às vezes ela diminuía o passo e olhava firme para ver se a barriga do corpo respirava. Tudo bem se ele estivesse vivo. Mais desesperador seria se no meio daquele centro as pessoas andassem pulando e desviando de cadáveres pretos e sujos. Então ela olhava as barrigas, se subiam e desciam com o ar. No caso de morte ela pediria ajuda, pelo menos para limpar a cena e não deixar um cadáver ser algo comum na Praça da República.

“Eu nunca vou sentir muito.”

Olhou para os lados, piscou o isqueiro.

“Eu NUNCA vou sentir muito.”

Comprou um vinho no mercadinho da santa cecília e se lembrou dele. Lá naquele verão. Lá naqueles dias de fazer só beijar na boca e transar no mato. Ela sabia que as temporadas em que o Amor e o Tempo se apaixonavam eram sempre ótimas. Principalmente quando voltavam a acontecer. Em seguida lembrou-se dela mesma em suas melhores fases. Aquelas que ela mesma criava assim que decidia que era hora. Lembrou dos vinhos, da rua, do mar, do vento, e sentiu com muito mais gosto a saudade de ir à caça de si. Afinal, ela sabia que as temporadas em que o Amor e o Tempo se apaixonavam por ela eram sempre ótimas. Principalmente quando voltavam a acontecer nesse ciclo sem fim.

Caminhou mais um pouco. Olhando de esguelha pelos cantos com a ponta entre os dedos e pronta para largar no primeiro sinal do vermelho cinza e branco. Ela sentiu muitas coisas naquela semana. Muito medo, muita angústia, muita raiva, pouco amor. Muito desamor. Desamor é quando você vê o amor arrumando as malas e esvaziando os armários do seu peito enquanto você ainda tem que levar o dia como se nada de incomum estivesse acontecendo. O amor estava saindo novamente, com aquela desculpa safada de quem tinha que ir. E ela sempre o aceitava quando ele voltava. E ele voltava com outro corpo, outro rosto, outras mãos, mas era o mesmo. A fazia se sentir do mesmo jeito. Derretida, enluarada, vitaminada. Daí ele colocava as roupas no armário novamente, fazia uns carinhos novamente, contava histórias novamente, para depois a mesma ladainha. Ela estava cansada. Pediu pra deus para ser feliz e se lembrou da Mãe e sua cara de vivida, com trinta e poucos anos de casada e dois filhos.

Quis viver uma vida nova e diferente. Como a da amiga que passava os meses viajando e fumando maconha pelo nordeste do país. Mas as palavras de angola vieram logo em seguida: calça o sapato do outro pra ver se te cabe; daí você vai saber como é. Pensou que já estava de saco cheio do seu próprio sapato. Lembrou dos negros que apareciam no trabalho. Das disputas primárias entre gente da mesma cor. Das disputas infelizes entre gente da mesma cor e com uma xota entre as pernas. De acharem que ela, pelo conjunto aparente da obra, nunca estaria apta o suficiente. Sentiu saudades de lá nos oito anos, quando o racismo acontecia, ela não entendia nada e o mundo continuava veludo, macio e intocado.

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Malokêarô

A minha idade não sabe quando começou, muito menos quando pretende terminar.