A tumba de IôIô no Cemitério de Paranapiacaba

Malokêarô
3 min readMar 13, 2018

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Fui visitar um cemitério. O motivo pelo qual ainda não está bem explicado no meu próprio consciente. Entrei ali ao meio dia, sem vergonha, sabe? Tocando o lado direito do portal de entrada. Considero que os espíritos já sabem de mim. Já compreendem a minha essência. Eu estou no meio a meio. Por isso, sempre que sinto ser possível, eu toco o invisível.

Caminhei pelas tumbas. Algumas atualizadas, reformadas com a cara do novo milênio; outras preservadas, guardando em si os ares dos tempos antigos, apenas retocadas em seus detalhes clássicos e em suas cruzes seculares. As menos lembradas já se desmanchavam. Eu via ali, novamente, as vidas acontecendo. Uma mulher que faleceu sozinha. Jovenzinha e franzina. Numa tumba de pedra cinza, beirando musgo nas esquinas. Desconfortável para o meu tamanho. Talvez até desconfortável para ela. Morreu com flores. Recebendo lembranças “ofrecidas (assim, com ‘frê’) pelo seu esposo”, no inicio de 1900.

Vi noutro lado duas crianças. Uma de quatro meses e outra de quatro anos, onde “aqui jaz um inocente” era a frase da dolorosa despedida. Deitadas no maior templo do pequeno cemitério, dormiriam os ossinhos eternamente ao lado dos parentes. Em camas de tinta branca, teia de aranha e restos de vela.
Eu também via lápides de mistério, de notícia de datena. Dois homens, mortos no mesmo dia num acidente da ferrovia. No horário e em momento de trabalho, na São Paulo Ráiuei. Duas tumbas patrocinadas pela empresa. Erguidas juntas. Duas tumbas em condolências aos servidores mortos num acidente relevantemente importante para garantir o financiamento de dois velórios. Realizados ao mesmo dia. Nada mais do que isso. Me bateu a curiosidade sobre como, na época, aquilo tocou os ouvidos dos moradores da comunidade.

Caminhei um pouco mais. O Sol rachava pedras, esquentava meu cabelo e fazia luzir toda a fonte da minha paixão. Só assim eu entraria num cemitério, mesmo que duas da tarde. Virei uma esquina de tumba, vi no fundo do caminho um oásis. Um canto de árvore isolado e fresco. Um lugar excelente para estender nossas esteiras e descansar o peso dos nossos dias. Desejei. Mas algo não me fez ir diretamente. Quem sabe o pudor de não deitar em terreno de cemitério, esses lugares são muito benzidos, muito sofridos; porque gente viva pouco aceita morrer.

Dei a volta por sobre a colina. Fui parar do outro lado e um pouco acima do conjunto de árvores. O Sol ainda assava, mas ali não. Ali brisa fresca, quase fria nos meus pés, suave na minha cabeça. Comecei a analisar as plantas. Coqueiro, samambaia, folhas verdes, grandes e grossas. Maiores que minhas palmas juntas e abertas. Folhas escuras. Completas de energia. Que fazia fluir delas e para elas a tranquilidade. Quando vi, era a tumba de IôIô. Percebi isso ao procurar as raízes e encontrar uma lápide rasgada. Uma tumba estourada pela força das árvores.

Agora que já te disse os fatos, compartilho os mistérios. Pois IôIô era um negro novo, do começo dos novecentos. Muito considerado por ser filho não dito do senhor Speers e, melhor que isso, por ter sido criado com os filhos de direito do senhor Speers. Por isso ele gostava quando toda a negrada o chamava, não se sabe se por respeito ou comédia, de IôIô.

Mas não era só disso que se fazia IôIô. Ele tinha ciência da vida, e queria viver. Tendo observado o mundo de seu pai, desejou poder aproveitá-lo. Por isso morreu bêbado, pensando que um dia teria as mesmas portas que os filhos brancos de seu Speers. Frustrado por não conseguir nada além do dinheiro da cerveja, morreu ainda com baba na boca, surrado pela guarda da cidade. Mas IôIô queria viver. Em nome da mucama dos seus desejos o pai de IôIô deu um velório decente para o bastardinho no vilarejo de Paranapiacaba. Perto do casarão da família Speers. Foi muito chique, mas nem os pretos escravos apareceram para prestar as últimas saudações ao semelhante.

Agora é a parte da lenda. Não é certo se foi sua mãe, alguma de suas amantes-amadas, algum irmão compreensível ou a força do próprio homem. Mas é que da tumba de IôIô brotou primeiro uma palmeira, depois samambaias, depois lírios da paz, depois capeba e finalmente taioba. Tava lá seu IôIô. Nascendo novamente, pouco-pouco depois da morte. Ele tinha ciência da vida, e queria viver.

Continuei olhando a tumba, o ventinho frio rodopiava minhas canelas. Senti vontade de descer e me sentar ao lado do seu IôIô. Mas ele não me conhecia, por isso eu não podia ser assim, tão descarada.

Bruna Tamires

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Malokêarô

A minha idade não sabe quando começou, muito menos quando pretende terminar.